
Lula cumpriu a promessa e a Argentina foi o destino de seu primeiro passeio. Um sinal de força? Pode ser, quando se descobrir que sangue corre hoje nas veias da máquina estatal brasileira. Aqui as chaves.
Por Martin Granovsky
Luiz Inácio Lula da Silva não só escolheu a Argentina como primeiro destino de viagem: foi incentivado a viajar. Sair do Brasil. E fê-lo pouco depois de uma rebelião cujo alcance ainda é desconhecido. Sua aposta é tão evidente quanto ousada. “Vou embora porque sou o presidente e quero mostrar que controlo o Estado”, parece ter raciocinado.
A viagem à Argentina ocorre no momento em que Lula enfrenta seu principal desafio. Não é domínio do Congresso, como alguns analistas podem pensar. Eles não são os governadores. Não é, hoje, o agronegócio, e talvez o desafio dos dias de hoje não seja o poder dos grandes bancos brasileiros e das finanças transnacionais. O desafio mais urgente para o novo governo é justamente quem administra o aparato do Poder Executivo. Da Presidência, dos ministérios, das Forças Armadas, da polícia e da inteligência.
Um investigador rigoroso, o jornalista gaúcho Jefferson Miola, veio verificar no primeiro ano de mandato de Jair Bolsonaro que três mil soldados haviam sido nomeados para cargos estaduais. Não só no Ministério da Defesa. Também no resto. E especialmente nas áreas de decisão orçamentária e administrativa. Uma praga. O objetivo era controlar os ferros da máquina estatal.
A figura é melhor compreendida lembrando que Bolsonaro, um capitão, era militar. Que seu vice, general Hamilton Mourão, era militar. Que eles eram importantes ministros militares ou oficiais com patente equivalente. O Secretário de Governo, General Carlos Alberto dos Santos Cruz. Ministro da Defesa, General Fernando Azevedo e Silva. O chefe do Gabinete de Segurança Institucional, General Augusto Heleno Ribeiro. O ministro da Tecnologia, tenente-coronel Marcos Pontes, Luis Mandetta, ministro da Saúde, era médico militar. Ele foi substituído por Eduardo Pazuello, general que acabou sendo investigado pela morte de pacientes com Covid em hospitais de Manaus por falta de oxigênio. Em outro movimento de militarização, Bolsonaro deslocou o chefe da Casa Civil (Chefe do Estado-Maior da Argentina), Onyx Lorenzoni, para nomear outro general, Walter Souza Braga Netto. Entre os civis que acompanhavam o núcleo de generais estava o primeiro ministro das Relações Exteriores de Bolsonaro, Ernesto Araújo, um medíocre diplomata fundamentalista. Em um trabalho acadêmico, ele argumentou, em tom de lamento, que Deus e a política se separaram em 1789. É a data da Revolução Francesa.
A presidência de Bolsonaro foi o que mais se aproximou de uma reconstrução do Partido Militar que se pode imaginar em um país do Cone Sul da América.
O antropólogo Piero Leirner argumentou em 2021 que um grupo de generais, ativos e aposentados, pretendia realizar uma reestruturação completa do Estado para militarizá-lo. “Seria uma estrutura de poder infiltrada nos espaços do Estado, e não apenas no Executivo, com o controle dos canais políticos e dos recursos da gestão do Estado”, afirmou. Segundo Leirner, um relatório do Tribunal de Contas revelou em julho de 2020 que já havia 6.157 militares no Estado. O centro de comando seria o Gabinete de Segurança Institucional. O plano teria sido lançar Bolsonaro no papel de incendiário para que depois o consórcio de generais se oferecesse como garantia da ordem.
No seio do Partido Militar deve-se acrescentar a influência das milícias que controlam as favelas, o crescimento das polícias provinciais (que depois de 38 anos de democracia no Brasil ainda se chamam PM, Polícia Militar) e a autonomia da Polícia Federal .
A MP mais exposta foi a de Brasília. Ele permitiu que nada menos que 105 ônibus fretados especialmente com 3.900 passageiros passassem para a capital, depois transformados em vândalos.
A PF já havia conspirado com Lula em seu primeiro governo, no ano eleitoral de 2006, quando seu serviço de inteligência transformou um episódio de financiamento político irregular em escândalo político. Na história permaneceu como Mensalao.
Em 16 de janeiro, Miola escreveu um interessante artigo intitulado “Lula e a questão militar”. Ele informou que os ataques terroristas de 8 de janeiro, contra as sedes das três potências em Brasília, “afetaram irremediavelmente a confiança de Lula nas Forças Armadas”. Lula chegou à conclusão de que a responsabilidade era da direção. Jeff, como é conhecido o analista no Brasil, explicou que a prova dessa desconfiança foi a decisão de decretar a intervenção da área de segurança do Distrito Federal ao invés de convocar os militares para defender a ordem. O Exército já havia preparado 2.500 soldados “para intervir contra o caos e a desordem que o próprio Exército havia construído”. Lula teria entendido que se aceitasse a manobra se tornaria um presidente fantasma.
Em vez de ceder à extorsão disfarçada de auxílio, o presidente optou por convocar todos os governadores e tirar uma foto com eles no Planalto, a Casa Rosada de Brasília. Assim, um mundo que já havia se solidarizado com o quadro institucional teve mais um elemento de julgamento a favor de Lula.
E no último sábado o presidente deu mais uma demonstração de autoridade ao demitir o chefe do Exército, Júlio César de Arruda. Foi substituído pelo general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, que tinha dito numa cerimónia militar que “quando votamos, temos de respeitar o resultado das urnas”.
Além da conivência com os vândalos do dia 8 de janeiro, muitos dos quais acampados próximo ao quartel-general do Exército em Brasília, Arruda não aceitou a ordem de Lula para aposentar o coronel Mauro Cid, ex-ajudante de campo de Bolsonaro. Cid deveria assumir a chefia do Primeiro Batalhão de Ações e Comandos, unidade de operações especiais, em fevereiro.
Atos de rebeldia vinham aumentando desde a vitória eleitoral de Lula. Na Marinha pela primeira vez desde 1985, em regime de democracia, o comandante cessante Almir Santos não compareceu à posse do entrante Marcos Sampaio Olsen.
“O soldado é educado para cumprir ordens”, escreveu o historiador Manuel Domingos Neto no “Brasil 247”. “Se ele não os recebe, ele impõe sua própria vontade.” Domingos Neto também afirmou: “No Brasil, o político nunca esteve preparado para orientar o soldado. Assim, deixou a defesa do país em mãos erradas. Ao não se impor ao soldado, o político declina de sua obrigação e deixa a democracia ameaçada. Na linha de Leirner, o historiador escreveu que desde 2014, pelo menos, os militares intervêm na dinâmica política através de sinergias com a imprensa, com juízes, com líderes religiosos, com empresários e com redes. Sua tese é que chegou a hora de agir rapidamente e interromper esse processo, porque será impossível fazê-lo se o apoio popular diminuir a qualquer momento.
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